‘Síndrome de Havana’: novos casos na Europa intrigam os EUA
Mais quatro diplomatas americanos que trabalham em Genebra e Paris adoeceram com uma suspeita de doença neurológica conhecida como “síndrome de Havana”.
Segundo a mídia americana, três diplomatas ficaram doentes na cidade suíça e um na capital francesa no verão passado. Ao todo, quase 200 pessoas foram afetadas por essa condição ao longo de cinco anos.
O secretário de Estado, Antony Blinken, disse que o governo americano está trabalhando para desvendar o mistério.
Há temores de que um país adversário possa estar afetando diplomatas com algum equipamento baseado em micro-ondas.
Segundo Blinken, há suspeitas contra a Rússia, mas não há nenhuma prova disso. “Até o momento, não sabemos exatamente o que aconteceu e não sabemos exatamente quem é o responsável”, disse ele à emissora MSNBC.
“Estamos trabalhando horas extras em todo o governo para chegar ao fundo do que aconteceu, quem é o responsável”, acrescentou.
A síndrome de Havana surgiu pela primeira vez em Cuba em 2016 e afetou diplomatas, espiões, funcionários e familiares dos EUA, bem como vários funcionários diplomáticos canadenses que atuavam na capital cubana.
Uma mulher relatou um zumbido baixo e uma pressão intensa em seu crânio; outro sentiu uma pulsação de dor. Há quem não tenha ouvido nenhum som nem sentido calor ou pressão.
Mas para aqueles que ouviram o som, tapar os ouvidos não fez diferença. Algumas das pessoas que enfrentaram essa síndrome ficaram com tonturas e fadiga durante meses.
Os casos mais recentes incluem uma pessoa que foi transferida da Suíça para os EUA para receber tratamento médico.
Em entrevista à MSNBC, Blinken relatou ter se encontrado com funcionários do Departamento de Estado ao redor do mundo que lhe contaram sobre a doença e como suas vidas foram extremamente afetadas.
Médicos, cientistas, agentes de inteligência e autoridades têm quebrado a cabeça para descobrir o que causa a síndrome de Havana.
Alguns afirmam que a Rússia, a China e os próprios EUA pesquisaram micro-ondas para fins militares, e que isso pode explicar a onda de casos atual. Mas Moscou tem refutado veementemente as acusações “fantasiosas” de que usou “armas de micro-ondas” contra funcionários dos EUA no exterior.
Outra hipótese, também não comprovada, indica que aqueles que ficaram doentes sofriam de uma condição comum a todos causada por alguma situação extremamente estressante.
Investigação sobre as possíveis causas
Quando James Lin, professor da Universidade de Illinois (EUA), leu os primeiros relatos sobre sons misteriosos em Havana, imediatamente suspeitou que as micro-ondas fossem as responsáveis pelo problema.
Sua crença se baseava não apenas na pesquisa teórica, mas na sua própria experiência. Décadas antes, ele próprio ouvira os sons.
Desde a Segunda Guerra Mundial, há relatos de pessoas sendo capazes de ouvir algo quando um radar próximo foi ligado e começou a enviar micro-ondas para o espaço. Mesmo sem ruídos externos.
Em 1961, um artigo assinado por Allen Frey argumentou que os sons eram causados por micro-ondas interagindo com o sistema nervoso, levando ao termo “Efeito Frey”. Mas as causas exatas — e implicações — permaneceram inconclusas.
Na década de 1970, Lin deu início a experimentos em torno do fenômeno na Universidade de Washington.
Ele se sentou em uma cadeira de madeira em uma pequena sala forrada por materiais absorventes, com uma antena apontada para a parte de trás de sua cabeça. Em sua mão segurava um interruptor de luz.
Do lado de fora, um colega enviava pulsos de micro-ondas pela antena em intervalos aleatórios. Se Lin ouvisse um som, ele deveria apertar o botão.
Um pulso parecia o som de um zíper ou de um estalar de dedo. Uma série de pulsações lembrava pássaros. Todos foram produzidos em sua cabeça, e não como ondas sonoras vindas de fora.
Lin acreditava que a energia era absorvida pelo tecido mole do cérebro e convertida em uma onda de pressão que se movia dentro da cabeça e era interpretada pelo cérebro como som.
Isso ocorria quando as micro-ondas de alta potência eram emitidas como pulsos, diferentemente da forma contínua de baixa potência obtida de um forno de micro-ondas moderno, por exemplo.
Durante a Guerra Fria, a ciência foi o foco de intensa rivalidade entre as superpotências EUA e União Soviética.
Até mesmo áreas como o controle da mente foram exploradas, em meio a temores de que o outro lado obtivesse uma vantagem. E isso incluía micro-ondas.
Lin viu a abordagem soviética em um centro de pesquisa científica na cidade de Pushchino, perto de Moscou.
“Eles tinham um laboratório muito elaborado e muito bem equipado”, disse ele. Mas o experimento ali era mais rudimentar do que o dele.
Uma pessoa ficava sentada em um tambor de água salgada do mar com a cabeça para fora. Em seguida, micro-ondas eram disparadas em direção ao seu cérebro. Cientistas achavam que as micro-ondas interagiam com o sistema nervoso e queriam questionar Lin sobre sua opinião.
A curiosidade aproximou os dois lados, e os espiões americanos acompanharam de perto as pesquisas soviéticas.
Um relatório de 1976 da Agência de Inteligência de Defesa dos EUA, “desenterrado” pela BBC, diz que não conseguiu encontrar nenhuma prova de armas de micro-ondas do bloco comunista, mas diz que soube de experimentos em que micro-ondas pulsavam contra sapos até que seus corações parassem.
O relatório também revela que os EUA temiam que as micro-ondas soviéticas pudessem ser usadas para prejudicar a função cerebral ou induzir sons para efeito psicológico.
“A pesquisa de percepção sonora interna tem grande potencial de se desenvolver em um sistema para desorientar ou interromper os padrões de comportamento do corpo militar ou diplomático”, relatava o documento.
O interesse americano era mais do que apenas defensivo. Lin também sabia do trabalho secreto dos EUA com armas no mesmo campo.
O interesse do país em usar micro-ondas como arma se estendeu além do fim da Guerra Fria.
Documentos apontam que a partir da década de 1990, a Força Aérea dos EUA tinha um projeto com o codinome “Hello” para ver se as micro-ondas podiam criar sons perturbadores na cabeça das pessoas, um chamado “Goodbye” para testar seu uso em controle de multidão e outro com o codinome “Goodnight” para ver se eles serviriam para matar pessoas.
Informações da última década sugerem que eles não tiveram sucesso.
Em relação à onda atual, uma teoria é que em Havana foi usado um método para realizar algum tipo de vigilância com micro-ondas de maior potência.
Um ex-funcionário da inteligência do Reino Unido disse à BBC que as micro-ondas poderiam ser usadas para “iluminar” dispositivos eletrônicos para extrair sinais ou identificá-los e rastreá-los.
Outros especulam que um dispositivo (até mesmo um de origem americana) pode ter sido mal projetado ou com defeito e causado uma reação física em algumas pessoas. No entanto, as autoridades americanas disseram à BBC que nenhum dispositivo foi identificado ou encontrado.
Um relatório de dezembro de 2020 da Academia Nacional de Ciências dos EUA se tornou crucial na investigação.
Especialistas coletaram evidências de cientistas e médicos, bem como de oito vítimas. “Foi bastante dramático”, lembra o professor David Relman, da Universidade Stanford, que presidiu o painel.
“Algumas dessas pessoas estavam literalmente escondidas, por medo de novas ações contra elas por parte de quem quer que fosse. Na verdade, houve precauções que tivemos que tomar para garantir sua segurança”, disse ele.
O painel analisou diversas causas (incluindo psicológicas) e concluiu que pulsos de micro-ondas direcionados e de alta energia eram provavelmente responsáveis por alguns dos casos, semelhante à opinião de James Lin.
A BBC apurou que novas evidências estão chegando à medida que os dados são coletados e analisados de forma mais sistemática pela primeira vez.
Alguns dos casos deste ano mostraram marcadores específicos no sangue, indicando lesão cerebral. Esses marcadores desaparecem após alguns dias e, anteriormente, muito tempo havia transcorrido até que eles fossem identificados.
Atualmente as pessoas estão sendo testadas muito mais rapidamente após relatar os sintomas pela primeira vez.
Hipótese de doença psicogênica em massa e insatisfação crescente
Alguns dos afetados na China contataram Beatrice Golomb, professora da Universidade da Califórnia, que há muito tempo pesquisa os efeitos do micro-ondas na saúde, bem como outras doenças inexplicáveis.
Ela disse à BBC que escreveu à equipe médica do Departamento de Estado em janeiro de 2018 com um relato detalhado de por que achava que as micro-ondas eram as responsáveis pelos casos.
Golomb afirma que altos níveis de radiação foram registrados por familiares de funcionários em Guangzhou (cidade chinesa onde também houve casos da síndrome de Havana), usando equipamentos disponíveis em lojas do ramo.
“A agulha bateu no topo dos medidos disponíveis”, disse Golomb. Mas, segundo ela, o Departamento de Estado disse a seus funcionários que aquelas medições deveriam ser confidenciais.
Mas apenas 1 dos 9 casos da China foi inicialmente associado pelo Departamento de Estado aos critérios de classificação da síndrome com base nos casos de Havana.
Isso deixou outros que relatavam sintomas com raiva e se sentindo como se estivessem sendo acusados de inventar tudo aquilo. Eles começaram uma batalha pela igualdade de tratamento, que continua até hoje.
Robert W Baloh, professor de neurologia na Universidade da Califórnia, estuda há anos sintomas de saúde inexplicáveis.
Quando ouviu os relatos da síndrome de Havana, concluiu que eram uma condição psicogênica em massa.
Ele compara isso à maneira como as pessoas se sentem mal quando são informadas de que comeram comida contaminada, mesmo que não houvesse nada de errado com ela. Seria o inverso do efeito placebo.
“Quando você vê uma doença psicogênica em massa, geralmente há alguma situação subjacente estressante”, diz ele.
“No caso de Cuba e da massa de funcionários da embaixada, particularmente os agentes da CIA que foram os primeiros afetados, eles certamente estavam sob uma situação estressante”, acrescentou.
Em sua opinião, sintomas do dia a dia, como névoa cerebral e tontura, são agrupados — pelos pacientes, pela mídia e pelos profissionais de saúde — como uma síndrome.
“Os sintomas são tão reais quanto quaisquer outros sintomas”, diz ele, argumentando que os indivíduos se tornaram hiperconscientes e temerosos à medida que os relatos se espalharam, especialmente dentro de uma comunidade fechada.
Isso, ele acredita, então se tornou contagioso entre outros funcionários americanos atuando no exterior.
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Fonte: Por BBC News