Museu de Paris tem 18 mil crânios e pouca vontade de dizer de quem são
Críticos acusam Museu da Humanidade de reter informações que poderiam ajudar ex-colônias e descendentes de povos conquistados a recuperar os restos humanos
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Por Constant Méheut, The New York Times — Paris
15/12/2022 04h30 Atualizado há 4 horas
Com sua monumental fachada art déco, de onde é possível ver a Torre Eiffel, o Museu da Humanidade é um marco parisiense. Em seu porão, contudo, está uma coleção controversa: 18 mil crânios, inclusive de chefes tribais africanos, rebeldes do Camboja e povos indígenas da Oceania.
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Muitos deles vieram de antigas colônias francesas, mas há também remanescentes de mais de 200 indígenas americanos, incluindo integrantes das tribos sioux e navajo. Os restos mortais, mantidos em caixas de papelão armazenadas em estantes de metal, compõem uma das maiores coleções de crânios humanos do mundo, que atravessa séculos e vêm de todos os cantos do planeta.
Também são, contudo, envoltos em segredos. Detalhes sobre as identidades dos crânios e o contexto em que a coleção foi formada, algo que poderia abrir as portas para pedidos de restituição, nunca foram divulgados.
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Um memorando confidencial obtido pelo New York Times, contudo, afirma que a coleção inclui os ossos de Mamadou Lamine, um líder muçulmano do Leste da África que, no século XIX, liderou uma rebelião contra tropas da França colonial. Há também uma família de inuits do Canadá exibida em um zoológico humano em 1881 e cinco vítimas do genocídio armênio da década de 1910.
— Às vezes, os supervisores diziam, “nós devemos esconder” — disse Philippe Mennecier, um linguista aposentado e curador que trabalhou por décadas no Museu da Humanidade. — O museu teme um escândalo.
A falta de transparência vai na contramão do crescente reconhecimento que a França faz de seu passado colonial, processo que já abalou muitas instituições. Também despertou pedidos de restituição de itens de antigas colônias ou povos conquistados, e restos humanos com frequência são listados como prioridade desses grupos.
Se a França é vanguardista europeia na investigação e no retorno de coleções de artefatos da era colonial — objetos com valor cultural, feitos por mãos humanas — perde para seus vizinhos no que diz respeito a restos humanos. Museus alemães, holandeses e belgas, por exemplo, criaram protocolos claros para lidar com os resquícios, com critérios diferentes dos adotados para outras peças.
Em vários casos recentes de destaque, instituições nos países citados devolveram crânios e cabeças mumificadas, com promessas de maior transparência e responsabilização. Pedidos para a restituição de objetos culturais geralmente levam em conta as condições em que foram tomados, mas para restos humanos, o requerente geralmente precisa provar apenas uma conexão ancestral.
Na França, contudo, críticos dizem que o Museu da Humanidade limita a pesquisa em sua coleção, retendo informações essenciais para pedidos de restituição. A instituição tem uma política antiga de apenas devolver restos com “identificação nominal”, ou seja, fragmentos humanos de uma pessoa com conexão comprovada com o requerente. Para alguns pesquisadores, é uma tática restritiva cujo fim é criar obstáculos para devoluções.
— Nossos museus deveriam fazer uma autoanálise — disse André Delpuech, ex-diretor do Museu da Humanidade, que deixou o posto em janeiro. — Mas até agora, é uma abordagem cabeça dura.
Christine Lefèvre, uma funcionária do alto escalão do Museu de História Natural, responsável pela administração do Museu da Humanidade, disse que as “coleções estão abertas para qualquer um que venha com um projeto de pesquisa sólido e sério”. Segundo ela, a filiação comunitária é um critério demasiadamente vago, e conexões com grupos do século XIX são difíceis de estabelecer.
Afirmou, contudo, que crânios anônimos de indivíduos cujas funções sociais podem ser determinadas, como líderes tribais, podem ser considerados restituíveis.
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Fachada do Museu da Humanidade, em Paris — Foto: Violette Franchi/New York Times
Anos de alerta
Em 1989, Mennecier, o curador, criou a primeira base de dados eletrônica da coleção, o que lhe permitiu identificar centenas do que chamou de crânios “potencialmente litigiosos”, que poderiam ser reivindicados por pessoas que desejam honrar seus ancestrais. Entre eles, restos mortais de líderes anticoloniais e povos indígenas coletados como troféus de guerra ou saqueados por exploradores.
Percebendo os problemas em potencial conforme as demandas de restituição ganhavam força internacionalmente, Mennecier disse que alertou os líderes do museu diversas vezes ao longo dos anos sobre os restos mortais. Pedia para que “informassem as principais autoridades do governo, possivelmente as embaixadas, e comunidades relevantes”.
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Os apelos foram em vão, disseram ele e Alain Froment, antropólogo no museu, deixando governos estrangeiros e comunidades indígenas no escuro. Segundo Lefèvre e Martin Friess, que é responsável pelas coleções de antropologia moderna do Museu da Humanidade, as informações foram mantidas em sigilo devido a preocupações com privacidade, medo de controvérsias e devido a incertezas sobre a identidade de alguns dos restos humanos.
Vários pesquisadores e parlamentares, contudo, afirmaram que o posicionamento do museu era consequência de uma preocupação maior: de que a transparência pudesse abrir as portas para pedidos de restituição.
Assim como outras instituições, o Museu da Humanidade enfrenta pedidos crescentes de repatriação, mas, ao contrário de pares em outros países europeus e nos EUA, não investe significativamente em pesquisas sobre as origens dos restos humanos que compõem sua coleção. Também faltam diretrizes sobre como responder às solicitações ou devolver os ossos.
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Instalação no Museu da Humanidade, em Paris — Foto: JC Domenech/Museu de História Natural da França/NYT
Nas últimas duas décadas, a França devolveu apenas 50 conjuntos de restos humanos para países como África do Sul, Nova Zelândia e Argélia. Para comparação, a Alemanha retornou oito vezes mais itens no mesmo intervalo, segundo um pesquisador da Escola Médica de Brandemburgo.
Parte da razão para tal discrepância são políticas como a demanda de identificação nominal do Museu da Humanidade. Planos para devolver restos humanos de indígenas australianos, em sua maior parte sem identificação, estão paralisados devido a isso, afirmaram Mennecier e Froment.
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A política da instituição francesa não é compartilhada por outros museus europeus e “não tem embasamento legal evidente”, diz o memorando confidencial do Museu da Humanidade. Também contradiz um relatório encomendado pelo governo em 2018, também obtido pelo New York Times, que recomenda que restos anônimos que possam ser conectados a uma família ou grupo indígena sejam passíveis de devolução.
O documento em questão, que encorajava a França a ter uma postura mais pró-ativa no âmbito das restituições, nunca foi divulgado para o público. Suas propostas nunca foram implementadas.
Complicações legais
Para deixar o assunto ainda mais complicado, objetos em coleções de museus públicos são propriedades do Estado francês. Para que mudem de dono, é necessário que o retorno seja votado como uma lei — um longo e trabalhoso processo que às vezes faz com que a França empreste os restos humanos em vez de ceder sua posse.
Um representante do Ministério da Cultura do país disse que trabalha em uma lei abrangente para regulamentar os retornos futuros de restos humanos. Contudo, Pierre Ouzoulias, um senador de esquerda que já fez vários relatórios sobre restituição, disse que o governo mostra tudo menos boa vontade.
Segundo Ouzoulias, o Eliseu inclusive rejeitou uma proposta do Senado para estabelecer um conselho científico sobre restituições. Também não examinou ainda uma lei aprovada pela Casa em janeiro que tiraria do Legislativo a necessidade de aprovar todo pedido de devolução.
Mennecier, o curador, e Delpuech, o ex-diretor do Museu da Humanidade, disseram que o sigilo e as obstruções das autoridades podem ter repercussões em um momento no qual os pedidos de um reconhecimento do passado se acumulam. O medo foi ecoado por Ouzoulias em uma comissão parlamentar no ano passado.
Referindo-se aos crânios das vítimas do genocídio na Armênia, ele disse que a França arrisca travar um “grande conflito diplomático com alguns Estados quando eles tiverem conhecimento do conteúdo de nossas coleções”:
— É hora de isso parar — disse ele. — Não podemos mais viver com esqueletos nos nossos armários.
Fonte: Constant Méheut, The New York Times — Paris