‘Ele não se alimentava há dias. Seus lábios estavam rachados, sua pele seca e pálida’; médica fala do drama do povo Yanomami
Ana Caroline Marques, contratada pelo Programa Mais Médicos, é a única médica da UBS de Auaris, e relata falta de insumos básicos, como esparadrapo, e dependência de doações
Por Karolini Bandeira — Brasília
24/01/2023 04h30 Atualizado há 4 horas
Em uma unidade básica de saúde com estrutura precária, escassez de remédios e na maior parte do tempo sem transporte disponível, a médica Ana Caroline Marques de Souza relatou ao GLOBO uma rotina extenuante de trabalho, com até cem atendimentos em um único dia, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Indígena de Aracruz (ES), Ana Caroline é a única médica da UBS de Auaris, região que fica dentro do território de 30,4 mil habitantes e teve a emergência em saúde decretada pelo governo federal na sexta-feira. O cenário é atribuído por especialista ao aumento da presença de garimpeiros na área de proteção. A médica tupiniquim foi contratada há oito meses pelo Programa Médicos Pelo Brasil.
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Como é a estrutura da unidade de saúde onde os indígenas são atendidos?
Nossa unidade em Auaris é dividida em três setores: um consultório, uma área de internação e observação e a casa dos funcionários, onde ficamos pelo período de 15 a 30 dias. Os pacientes que precisam ficar internados ou sob observação — o que acontece muito, por não conseguirem tomar o remédio sozinhos ou por estarem fragilizados e não conseguirem voltar andando — ficam aglomerados na UBS. Na maioria das vezes, são duas pessoas por rede.
Costuma faltar medicamentos ou material?
Sim. Faltam desde medicações simples, como sulfato ferroso, dipirona, paracetamol e soro de reidratação oral, a remédios para casos mais graves, como soros antiofídicos, adrenalina, antibióticos, endovenosa e soro fisiológicos. Raramente temos esparadrapos, ataduras, luvas e equipo (aparelho usado para fornecimento de soro aos pacientes).
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O que vocês fazem na falta de remédio?
Tem vezes que eu compro do meu próprio dinheiro e levo. A equipe se ajuda. Conseguimos bastante doação de colegas da saúde. Mas nem sempre há o que fazer. Os casos vão desde desnutrição a insuficiências respiratórias graves.
Você falou que os pacientes ficam aglomerados na UBS. A equipe consegue atender à demanda?
Não. Houve momentos em que eu estava apenas com três técnicos e um guarda de endemias. Em um cenário assim, não consigo nem fazer o mínimo para oferecer uma assistência adequada. Hoje em dia, trabalho com uma equipe composta por enfermeiro, entre quatro e cinco técnicos de enfermagem e dois guardas de endemias. De médico, só tem eu mesma. No tempo em que ficamos no polo (de 15 a 30 dias), trabalhamos quase que o dia todo. Temos a rotina de atendimento geral das 8h às 12h e das 14h às 18h. Mas se há alguma urgência, precisamos estar disponíveis.
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Qual o caso que mais te marcou desde que chegou à Terra Indígena Yanomami?
Nossa, são tantos casos críticos. Mas um adolescente de 14 anos me marcou. Vou chamar de VS. VS veio de uma comunidade Koromatiu, onde a malária, infelizmente, acometeu mais de 50% da população, causando a morte, inclusive, do líder da comunidade. Em 26 de dezembro, recebemos um mensageiro relatando que lá havia vários doentes que não conseguiam nem caminhar. Devido à distância, era necessário fazer o resgate de helicóptero, mas não havia nenhum disponível ao solicitarmos. Só conseguimos realizar o resgate dia 4 de janeiro. Quando os indígenas chegaram, ao menos quatro estavam em estado crítico: desidratados, anêmicos e famintos. Ao examinar VS, a primeira coisa que ele me pediu foi comida. Ele me contou que não se alimentava havia dias. Seus lábios estavam rachados, sua pele seca e pálida e seu pulso, fraco. Após cuidados iniciais de hidratação, ele apresentou uma melhora discreta. Mas precisou ser transferido para a unidade de terapia intensiva de um hospital em Boa Vista, porque o quadro era muito grave. Ao contrário de muitas outras, no entanto, essa história teve um final feliz. Fiquei sabendo que ele teve alta no dia 10 e está agora na Casa de Apoio ao Indígena.
A unidade em que você trabalha fica longe das comunidades indígenas?
Tem comunidades que ficam de 20 a 40 minutos caminhando, e outras a que vamos de barco. Destas, há uma que fica a 30 minutos de barco, outra a 40 minutos e uma ainda mais longe. Quando temos barco disponível, vamos realizar consultas gerais. Mas não é fácil conseguir. Temos de pedir para o Exército ou para alguém da comunidade emprestar, porque o barco do Distrito Sanitário sempre quebra.
Não há equipes para limpeza e preparação de alimentos?
Não. Tudo somos nós que fazemos. Temos escala para limpar e cozinhar. Nos dividimos para preparar o café e o almoço dos pacientes e funcionários. Todos os dias, um funcionário tem a função de cozinheiro.
Na sexta-feira, o Ministério da Saúde decretou estado de emergência em saúde pública. Ontem, enviou reforços para o território. Como você avalia as medidas que foram tomadas?
Vejo com bons olhos, mas as estratégias precisam ser pensadas também como medidas de longo prazo. O cenário não se resolve apenas com ações emergenciais, porque elas têm prazo para acabar. Minha expectativa é que o governo desenhe um plano estruturado de atenção diferenciado para a saúde ianomâmi.
Fonte: Karolini Bandeira — Brasília