Tsunami na Ásia: uma onda de morte e destruição
Um terremoto de grandes proporções é uma tragédia. Neste caso, porém, foi só o começo.
No dia 26 de dezembro de 2004, quando a terra tremeu sob as águas do Oceano Índico, poucos podiam imaginar o alcance e a gravidade das consequências. O tsunami – uma série de ondas gigantes – provocado pelo intenso terremoto atingiria 14 países, a maioria na Ásia, com uma força devastadora.
Em meio à destruição, 226 mil pessoas morreram, e paisagens inteiras foram transformadas.
Não se tratava apenas da mais marcante tragédia causada pela natureza no século 21. Segundo as Nações Unidas, era o “pior desastre natural já registrado”.
Do tremor ao tsunami
Na manhã do domingo dia 26, Samran Chanyang, mestre de cerimônias do templo budista Yan Yao, na costa da Tailândia, conduzia uma oração ao microfone.
“De repente, nós ficamos sem energia e sentimos o terremoto. Em seguida, eu continuei a cerimônia sem o equipamento de som”, lembrou ele, em entrevista à BBC News, 15 anos depois.
O que Samran e outros presentes haviam sentido ocorrera bem longe dali. Às 7h59 locais, a 30 quilômetros embaixo da terra e 160 quilômetros a oeste da ilha indonésia de Sumatra, no meio do oceano, uma falha do planeta se movimentou de forma brutal.
Uma faixa de 1.200 quilômetros da placa tectônica Indoaustraliana avançou embaixo da placa Eurásia – um processo chamado subducção -, elevando em cerca de 20 metros o fundo do mar.
O terremoto, de 9,1 graus de magnitude, durou vários minutos e movimentou bilhões de toneladas de água -, provocando uma série de ondulações na superfície e originando o tsunami.
Foi o terceiro maior terremoto no mundo todo desde 1900 e o maior desde que um tremor abalou o Estado americano do Alasca em 1964. Liberou energia equivalente à gerada por milhares de bombas atômicas como a lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshima, em 1945.
O terremoto foi tão poderoso que a ilha de Simeulue, na costa da Indonésia, a oeste de Sumatra, foi deslocada. Corais que estavam no fundo do mar havia milhares de anos, acabaram na superfície.
O tsunami é uma realidade histórica no Oceano Pacífico, onde falhas geológicas fazem com que terremotos sejam comuns na região. A palavra vem do japonês, numa combinação de “tsu”, que significa “porto”, com “nami”, “onda”.
O Serviço Nacional Oceânico dos Estados Unidos define o fenômeno tsunami da seguinte forma: “Tsunami é uma série de ondas gigantes causadas por terremotos ou erupções vulcânicas sob o mar”.
Sobre como ela funciona, o órgão diz: “No meio do oceano, ondas de tsunami não aumentam enormemente em altura. Mas, conforme as ondas atingem a costa, elas vão adquirindo mais e mais altura com a diminuição da profundidade do mar”.
Foi exatamente o que aconteceu no Oceano Índico em dezembro de 2004. Com o tremor, o tsunami causado começou como pequenas ondas, de apenas 1 metro de altura, mas com mais de 150 quilômetros de comprimento e viajando a cerca de 800 quilômetros por hora.
Ao se aproximarem da costa, com a parte da frente desacelerando e a de trás vindo em alta velocidade, as ondas ganhavam altura. Quando chegaram aos trechos de terra mais próximos, nas áreas costeiras da Indonésia e da Tailândia, as ondas formadas tinham entre 10 e 30 metros de altura.
O Centro do Pacífico para Alerta de Tsunami, no Havaí (EUA), identificou o terremoto e chegou a divulgar um aviso às nações do Oceano Pacífico, dizendo que não havia riscos de tsunami naquela área.
Os países do Oceano Índico, onde não havia registros de tsunamis na era moderna, não contavam com um sistema de alerta.
Sem avisos, o primeiro país a ser atingido foi a Indonésia, 30 minutos após o tremor. Na ilha de Sumatra, a província de Aceh foi a mais castigada, sendo que Banda Aceh, sua capital, era a cidade grande mais próxima do terremoto.
Aceh sofreu danos já com o impacto do tremor e foi em grande parte devastada pelas ondas. O mar invadiu a terra com incrível violência, destruindo árvores, casas, barcos, tudo que estava pela frente. Em cerca de 15 minutos, milhares de pessoas foram mortas.
Ainda a leste do epicentro do terremoto, as ondas geradas pelo tsunami chegaram à Tailândia e Malásia.
Ao norte, atingiram os litorais de Myanmar e de Bangladesh. A noroeste, chegou à costa da Índia, e a oeste atingiu o Sri Lanka e as ilhas Maldivas.
Em cada lugar que atingia, deixava um rastro de destruição e morte.
Vidas levadas pelas águas
Em Aceh, a menina Rina, de 4 anos de idade, aproveitava o domingo com sua família quando sentiu o tremor de terra, “extremamente forte”. Alguém passou em frente a sua casa e gritou que a água do mar estava vindo naquela direção. “Todos nós começamos a correr”, relatou Rina à BBC News, dez anos depois da tragédia.
“Eu segurei a mão da minha mãe, mas ela foi tomada pelas ondas, e eu fui separada dela. Quando acordei, eu estava sozinha, cercada por água suja e cadáveres.”
Rina, que foi salva e reencontrou seu pai um mês depois, nunca mais viu a mãe ou a irmã mais velha.
O cotidiano daquele domingo em Aceh foi interrompido de forma abrupta, repentina, sem alerta, apesar do intervalo entre o tremor de terra e o tsunami.
O jovem Marthunis, que na época era um menino de 7 anos de idade, jogava futebol com amigos naquela manhã.
Uma década depois, ele contou ao jornal britânico The Guardian como todos foram pegos de surpresa. “Quando olhei para o mar eu vi uma coisa que eu nunca tinha visto antes – e fiquei aterrorizado. A minha família entrou correndo na nossa minivan, mas a rua estava lotada, com todo mundo tentando fugir”, contou Marthunis.
“A onda escura atingiu nossa minivan, virando o carro várias vezes, até que eu desmaiei. Quando eu retomei a consciência, eu estava na água. Segurando uma cadeira de escola, eu boiei até chegar à praia.”
Os relatos de sobreviventes e as imagens não deixavam dúvidas: a província de Aceh e sua capital estavam devastadas.
Poucos imóveis estavam de pé, barcos haviam sido jogados no meio da cidade, detritos e corpos cobriam as ruas.
Segundo o balanço feito posteriormente pelo governo da Indonésia, 129 mil pessoas morreram no país. Outras 37 mil ficaram desaparecidas, e mais de meio milhão, desabrigadas.
A vizinha Malásia acabou protegida pela ilha de Sumatra, que serviu de barreira contra o avanço do mar. Ainda assim, sessenta e nove pessoas morreram no país.
A fúria do mar e o nível de destruição não foram muito diferentes na Tailândia, atingida cerca de uma hora depois de Sumatra.
Em várias localidades, como as praias de Phuket e Phi Phi, as ondas destruíram resorts de turismo, com a presença de muitos estrangeiros.
Na paradisíaca vila de Khao Lak, uma cena vista em vários outros alvos do tsunami: muitos foram inocentemente atraídos por um fenômeno que antecede à chegada da onda gigante.
O mar recuou repentinamente, deixando uma vasta área aberta na areia – houve muitos relatos de gente pegando peixes deixados pela retração das águas.
“Era uma cena fascinante. As pessoas pegaram suas câmeras e caminharam em direção ao mar, agora seco. A praia estava cheia de turistas tomando sol”, disse Arlette Suip, que tomava café com seu marido Tom, no terraço de um hotel diante da praia.
Segundo ela, seu marido teve um pressentimento ruim, por já ter vivido diante do mar na Califórnia e nunca ter visto algo parecido.
“Aí caiu a ficha. A tremida que ele havia ouvido antes era um terremoto. O recuo da água era um prenúncio da onda. Tom pegou a minha mão e gritou ‘Corre!'” O casal correu em direção à mata, subindo uma colina.
Atrás deles, uma cena que foi comum em muitos resorts à beira do mar pela costa tailandesa: árvores, móveis e veículos sendo levados pelas águas enquanto pessoas tentavam se agarrar a alguma coisa.
Quando a situação ficou mais tranquila, voltaram ao hotel, onde encontraram muitos feridos, que ajudaram a colocar em caminhões que os levariam ao hospital. A Tailândia registrou mais de 8 mil mortos ou desaparecidos.
Ainda na Ásia, o tsunami também atingiu os litorais de Myanmar e Bangladesh e causou grande destruição na costa da Índia, país que registrou mais de 16 mil mortos ou desaparecidos.
O Estado indiano de Tamil Nadu, no extremo sul do país, foi o que mais sofreu – metade das mortes ocorreram na região.
A oeste, mais destruição
Meia-hora depois da tragédia na Tailândia, as ondas que viajaram para o oeste chegaram ao Sri Lanka.
Cerca de seis ondas gigantes invadiram a ilha do Oceano Índico, que seria o segundo país mais afetado pelo tsunami, com mais de 35 mil mortos e desaparecidos.
Até mesmo a costa sudoeste da ilha, que em tese não estava na rota do tsunami, foi duramente atingida, depois que uma movimentação das ondas fez com que parte delas contornasse o sul do país.
Em um dos episódios mais dramáticos do desastre, o Matara Express, que viajava pelo sudoeste, entre a capital, Colombo, e Galle, foi atingido em cheio por uma onda gigante que arrancou a composição dos trilhos. Mais de 1 mil pessoas morreram.
O guarda ferroviário Wanigarathne Karunathilaka trabalhava dentro do trem. Dez anos depois, ele descreveu à BBC News o que aconteceu naquele dramático dia.
“Como era feriado, o trem estava extremamente lotado”, disse. Tudo seguia normalmente quando, de repente, o trem parou. “Uma onda veio e invadiu o trem, molhando nossos pés. Primeiro achei que fosse apenas a maré, mas era bem incomum, porque atravessou o trem.” Karunathilaka então olhou para fora e viu as águas do mar arrastando tudo que havia à sua frente, “carros, lojas”.
“Eu vi pessoas se afogando, tentando desesperadamente sobreviver.” Pouco depois, veio uma segunda onda, que derrubou e destruiu a composição. O guarda conseguiu chegar ao teto do trem e pôde ver a completa devastação a sua volta, com os vagões todos espalhados na água. “Toda a área havia se tornado parte do mar.” O guarda conseguiu chegar a sua casa às 2h da madrugada. “Minha família estava discutindo meu funeral. Precisavam apenas encontrar o meu corpo.”
Perto dali, na cidade costeira de Unawatuna, o jornalista britânico Roland Buerk e sua esposa estavam num quarto de hotel, na beira da praia.
Em um relato à BBC News, no dia da tragédia, ele contou como sobreviveram. “Nós nadamos para fora do quarto, com água até o pescoço, abrindo caminho no meio de mesas e cadeiras do restaurante até chegar a uma árvore.”
Logo a árvore desabou, e eles foram arrastados por centenas de metros, “tentando desviar de motocicletas, geladeiras, carros e outros destroços”.
Conseguiram finalmente agarrar uma pilastra, onde ficaram até que as águas começassem a baixar. As ondas avançaram até 5 quilômetros em direção ao interior do Sri Lanka, cobrindo, além do sudoeste, toda a costa leste, de norte a sul.
Pelo menos meio milhão de pessoas perderam suas casa no país, que na época já sofria os efeitos de 20 anos de uma sangrenta guerra civil.
As ondas gigantes em direção ao ocidente não pararam no Sri Lanka. Viajaram ainda mais longe dali, atingindo a costa leste da África, especialmente a Somália – a 4.500 quilômetros do epicentro do terremoto.
Quase 300 pessoas morreram no país, com a península de Hafun, na ponta do chamado Chifre da África, sendo a parte mais afetada.
Quase 200 pessoas foram mortas na Somália, grande parte delas pescadores, e cerca de 300 em toda a costa leste africana – incluindo Tanzânia e Quênia.
Em todos os países atingidos pelo tsunami, da Indonésia às nações africanas, a tragédia desestruturou economias locais.
Países como Tailândia e Sri Lanka tiveram boa parte da estrutura de turismo destruída, enquanto em vários outros países sistemas de produção de alimentos foram devastados, arruinando as condições de vida de populações inteiras.
Socorro internacional
O mundo foi percebendo aos poucos a dimensão do desastre do Oceano Índico. No dia 26 de dezembro, a BBC News referia-se a uma tragédia de grandes proporções, mas ainda longe do tamanho que se revelaria mais tarde.
“Avanços do mar matam milhares na Ásia”, dizia a manchete no site da BBC. Na abertura do texto, a referência à violência do tremor de terra. “Mais de 10 mil pessoas foram mortas por todo o sudeste da Ásia em enormes avanços do mar disparados pelo mais forte terremoto no mundo em 40 anos.”
Países começavam a declarar estado de “desastre nacional”, e começava a mobilização por ajuda internacional.
“A presidente do Sri Lanka, Chandrika Kumaratunga, declarou desastre nacional, e o Exército foi enviado para ajudar no salvamento.”
Alguns detalhes do quadro terrível nas áreas afetadas começavam a aparecer, como nesta referência à situação em Aceh: “Há relatos de corpos sendo recuperados de árvores”.
No dia seguinte ao desastre, a Organização das Nações Unidas (ONU) estava à frente de uma ampla campanha humanitária para a região atingida. Várias de suas agências – como o WFT (Programa Mundial de Alimentos) e o Acnur (Alto Comissariado para Refugiados) – trabalhavam juntas em esforços para alívio imediato às populações atingidas.
No dia 31 de dezembro, um balanço da ONU revelava a enorme escala da tragédia, o documento mostrava que o tsunami já havia deixado pelo menos 120 mil mortos, havia meio milhão de feridos, 1 milhão de pessoas estavam desabrigadas, e 5 milhões estavam sem serviços básicos.
“As repercussões dessa tragédia são tão graves que comunidades terão de pedir massiva ajuda internacional por muitos meses”, dizia o diretor-executivo do WFP, James Morris.
Segundo a ONU, aquele já era a maior ajuda da organização já realizada devido a um desastre natural.
As ações incluíam instalar abrigos para aqueles que haviam perdido suas casas, oferecer ajuda médica para os feridos e levar água potável e alimentos para populações inteiras.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) planejava ações de prevenção de doenças na Índia, inclusive “contra possíveis surtos de sarampo”.
Em Aceh, na Indonésia, a operação da ONU estava providenciando abrigos e suprimentos de emergência para 100 mil pessoas.
No Sri Lanka, o Unicef (Fundo para a Infância das Nações Unidas) forneceu milhares de “lençóis, toalhas, garrafas de água potável”, entre outros produtos de necessidade básica.
Em janeiro, países já prometiam US$ 7 bilhões em ajuda à região. Outros tipos de auxílio vinham mesmo de nações mais pobres, como o Afeganistão, que prometeu enviar um grupo de médicos e medicamentos à Índia e ao Sri Lanka, e Bangladesh, que estava enviando cerca de 150 soldados para o Sri Lanka.
Além das Nações Unidas, várias entidades de ajuda humanitária, desde as consagradas Oxfam, Save the Children ou a Cruz Vermelha até organizações menores, participaram da assistência à população atingida.
Entretanto, houve críticas quanto à eficácia do trabalho realizado. Um relatório da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, divulgado em outubro de 2005, dizia que rivalidades entre agências envolvidas havia levado à duplicação de esforços e à demora no envio de ajuda a populações passando necessidade.
Segundo a direção da organização, mais de 300 entidades foram ao Sri Lanka para participar da ajuda, muitas delas inexperientes, o que dificultou a operação.
Melhorias na região
O prejuízo causado pelo tsunami foi avaliado em US$ 10 bilhões. Em 2009, balanço da ONU dizia que a comunidade internacional havia prometido US$ 14 bilhões em auxílio aos 14 países afetados – dos quais US$ 700 milhões já haviam sido enviados.
Segundo o Programa de Desenvolvimento da ONU (UNDP), com a participação de governos, agências internacionais e comunidades locais 250 mil novas casas haviam sido construídas.
Também haviam sido erguidos 100 novos portos e aeroportos, milhares de hospitais e escolas e criados sistemas de alertas de tsunamis em níveis regionais e nacionais.
Em 2006, entrou em funcionamento o Sistema de Alerta contra Tsunamis do Oceano Índico, resultado de uma conferência da ONU sobre o tema realizada no ano anterior.
Várias estações de detecção de abalos sísmicos foram instaladas na região, e países recebem avisos em cerca de dois minutos.
Autoridades de cada país, por sua vez, informam o público pelos meios de comunicação, telefones celulares, sirenes e sistemas de som – incluindo os de mesquitas.
Dez anos depois do tsunami, em 2014, novo balanço da ONU dizia que a região em torno do Oceano Índico estava bem melhor preparada para desastres de grandes proporções.
Segundo as Nações Unidas, os países haviam instalado novas estruturas de proteção contra inundações e sistemas de alerta para desastres naturais – com destaque para a Tailândia, que havia criado um departamento governamental para Prevenção e Redução de Desastres.
“Muitos países da região estão agora melhor preparados para reduzir os riscos e aliviar os danos de desastres naturais como tsunamis e tufões e proteger sua agricultura e sistemas de alimentos”, disse o então diretor da FAO, a agência da ONU para alimentação, Hiroyuki Konuma.
O total arrecadado pelas agências das Nações Unidas e aplicado na região chegou a US$ 6,25 bilhões.
Na década que se seguiu ao tsunami, as áreas mais destruídas passaram por um profundo processo de recuperação.
Em 2014, Banda Aceh, na Indonésia, estava coberta de novas casas, com ruas reconstruídas e vegetação recuperada.
A estrutura turística de Ko Phi Phi estava de cara nova e repleta de visitantes do mundo inteiro. As nações do Oceano Índico conseguiram aos poucos se reerguer, e as feridas deixadas pelo maior desastre natural da história começaram a cicatrizar.
As 226 mil vidas levadas pelas águas do tsunami serão sempre uma dolorosa lembrança da capacidade destrutiva da natureza.
Diante de um futuro de mudanças climáticas, as lições deixadas pelas ondas gigantes, sobre como respeitar o planeta e proteger comunidades, devem ser aprendidas.
Este artigo é parte da série “21 Histórias que Marcaram o Século 21“, da BBC News Brasil.