‘Carta aos Brasileiros’: Como foi a leitura do manifesto da USP na ditadura, em 1977
Defesa do Estado de Direito em pleno regime militar reuniu multidão no Largo de São Francisco, que volta a abrigar atos pró-democracia nesta quinta-feira, 45 anos depois
Por William Helal Filho
11/08/2022 04h30 Atualizado há 4 horas
Havia cerca de mil pessoas apinhadas no Pátio das Arcadas, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o chamado “território livre” do Largo de São Francisco. O evento tinha sido marcado para acontecer na Sala dos Estudantes, mas apareceu tanta gente que os organizadores optaram por um lugar mais amplo. Na noite daquela segunda-feira, 8 de agosto de 1977, havia muita conversa e excitação no ar, mas, às 20h, quando o professor Goffredo Telles Júnior se aprumou num púlpito improvisado para ler a “Carta aos Brasileiros”, o ambiente ficou mudo.
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O ato era uma celebração alternativa dos 150 anos dos cursos de Direito no Brasil. Como a cerimônia oficial da USP ficara a cargo do professor Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça do regime militar e um dos autores do AI-5, os juristas Flavio Bierrenbach, José Carlos Dias e Almino Affonso decidiram, em plena ditadura, rebelar-se e organizar uma ação que representasse a real vontade da comunidade acadêmica naquele momento. Convidaram, então, o professor Goffredo, um dos mais respeitados da faculdade, para redigir o documento que se tornaria um marco da redemocratização brasileira.
Nesta quinta-feira, 45 anos depois, o mesmo prédio no Largo de São Francisco volta a abrigar uma manifestação em defesa da democracia, com a leitura de dois documentos públicos elaborados em meio a ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra o sistema eleitoral do Brasil.
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Em 1977, o período mais duro da ditadura havia passado. Então presidente, o general Ernesto Geisel tinha se comprometido com uma abertura política “lenta, gradual e segura”. Mas ainda vivíamos sob um regime que perseguia opositores, censurava meios de comunicação e não permitia a eleição direta de governantes. Numa afronta a essa realidade, os signatários da “Carta aos Brasileiros” começavam o documento de 14 páginas declarando-se decididos “a lutar pelos Direitos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras” e terminavam afirmando: “A consciência jurídica do Brasil quer um a cousa só: o Estado de Direito, já”.
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Carta aos Brasileiros: Goffredo Telles Júnior durante leitura do documento, em 1977 — Foto: Silvio Corrêa/Agência O GLOBO
“Não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de quaisquer Estados de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus atos de Força, violadores freqüentes da Ordem Constitucional”, diz a carta, num claro recado aos militares. “Afirmamos que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito (…) Nós queremos segurança e desenvolvimento. Mas queremos segurança e desenvolvimento dentro do Estado de Direito”.
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A escolha de Goffredo fora estratégica. O professor de Ciência do Direito era anticomunista declarado, o que blindava a carta de ser tachada como peça de “esquerdismo” pelo regime. Na juventude, ele militara na Ação Integralista Brasileira (AIB), versão nacional do fascismo italiano, nos anos 1930. Décadas mais tarde, porém, garantiu que se opusera à ala extremista do movimento e que sempre fora um democrata. Por isso, dizia, não seguira os amigos que se filiaram ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). “Não tolerava o totalitarismo soviético”, afirmou ao jornal “Tribuna do Direito”, em 1996.
Quando o documento foi apresentado, naquela noite de 1977 na USP, havia sido assinado por 92 juristas. Ao fim da leitura, a carta foi aberta a adesões, quando mais de 300 pessoas o subscreveram. A partir do dia seguinte, o texto seria levado a diferentes capitais, para atrair mais apoio.
“O documento partiu desta faculdade, que há 150 anos escreve a história desta terra e que, a partir de agora, vem escrever a história da nossa nova libertação. Que este seja o último 8 de agosto vivido no regime de exceção. O Brasil quer ser uma nação democrática vivendo a essência de uma ordem jurídica, uma vida pública civilizada com o consentimento de toda a nação”, disse, durante o evento, o então senador Franco Montoro (MDB-SP), que viria a ser eleito governador de São Paulo, em 1982, e um dos principais artífices da campanha das “Diretas Já”, em 1983 e 1984.
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Carta aos Brasileiros. O público apinhado no Pátio das Arcadas, na USP — Foto: Silvio Corrêa/Agência O GLOBO
A reação imediata do regime e de seus aliados variou entre tentativas de minimizar a importância da carta e de dar ao documento lido na USP um caráter pejorativo. O coronel Toledo Camargo, então assessor de imprensa da Presidência, disse que “o governo não pretende comentar cada uma das opiniões que aparecem na imprensa”. Líder da Arena, o partido que dava sustentação à ditadura no Congresso, o deputado federal José Bonifácio ironizou: “O que se ouve por aí, que dá impressão do agitação, é puro zumbido de besouro, muito barulho e pouca expressão”.
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“A carta, o, bilhete ou o ofício foi produzido com a finalidade impatriótica de exacerbar o sentimento nacional. Ademais, este papel repete praticamente tudo o que, deformadamente, a oposição vem proclamando sobre o governo. Nisso reside o espírito faccioso do alegado documento”, criticou o então senador Eurico Rezende, líder do governo no Congresso Nacional.
Mas a repercussão da carta foi enorme. Mesmo com os organismos de censura funcionando, os jornais fizeram uma ampla cobertura do documento e seus desdobramentos. Tudo isso deu força a instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na defesa dos direitos humanos e da volta de democracia. Na noite de 11 de agosto, alunos e professores da USP se reuniram de novo no prédio do Largo de São Francisco para o encerramento das celebrações do aniversário de 150 anos dos cursos de Direito. Foi então que São Paulo viu algo que há muito não testemunhava.
Após um encontro em que os oradores destacaram a importância histórica da “Carta aos Brasileiros”, apareceu no evento uma reprodução do King Kong, tirada de um cinema. Todos riram e atiraram bolas de papel e vaiaram. Então, os milhares de alunos saíram em passeata, ignorando a proibição de manifestações. O ato percorreu o Viaduto do Chá, as avenidas São João, Ipiranga e São Luís. Às 22h30, tomou a Rua Xavier de Toledo e, outra vez, o Viaduto do Chá. De volta ao Largo de São Francisco, cantaram o Hino Nacional. Não houve confusão nem intervenção policial. Grande dia.
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Trecho da edição do GLOBO de 12 de agosto de 1977 — Foto: Reprodução
Fonte: William Helal Filho