Povo Yanomami não pratica canibalismo, nem cozinha corpo para comer; entenda
Questionamento sobre ritual de morte dos Yanomami veio à tona após trecho de entrevista de Jair Bolsonaro viralizar. Especialistas ouvidos pelo g1 afirmam que atrelar canibalismo à cultura Yanomami é falta de conhecimento e preconceito com os indígenas.
Por Valéria Oliveira, g1 RR — Boa Vista
09/10/2022 Atualizado há 1 horas
Um vídeo que circula nas redes sociais em que Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, afirma que quase “comeu um índio” morto na Terra Yanomami fez com que se questionasse o ritual de morte praticado por este povo. Afinal, o povo Yanomami pratica canibalismo? A reposta é não, segundo antropólogos ouvidos pelo g1. A reportagem conversou com pesquisadores e um indígena que pontuam que a fala do presidente desinforma e expressa falta de conhecimento.
O vídeo foi gravado em 2016 quando Bolsonaro, ainda deputado federal, concedeu entrevista ao “The New York Times”, em que falou sobre suas pretensões políticas. O material voltou a circular nessa quinta-feira (6) nas redes sociais por contas eleições. O atual presidente disputa a permanência no cargo com Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os dois se enfrentam no 2º turno no dia 30 de outubro.
Em determinado momento, o presidente afirmou no vídeo ter ido a Surucucu, na Terra Yanomami, quando viu um grupo de indígenas e soube que eles tinham “cozinhado” um indígena morto para “comer”. Bolsonaro disse que só não comeu a carne humana porque a comitiva não quis. “Eu comeria o índio sem problema nenhum.” O vídeo está disponível no canal de Bolsonaro no YouTube, numa entrevista de mais de uma hora.
A cena descrita por Bolsonaro não existe na cultura do povo Yanomami e tampouco faz parte de algum ritual deles, de acordo com o pesquisador Rogerio Pateo, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do departamento de antropologia e arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pateo disse que as “afirmações do presidente expressam a desinformação e o preconceito com os indígenas em geral, e com os Yanomami em particular.” O pesquisador explicou que, quando ocorre uma morte, os indígenas Yanomami se envolvem num ritual, chamado de Reahu, que dura semanas.
Este processo fúnebre envolve deixar o corpo na floresta, para que se decomponha. Depois, o funeral segue com a cremação dos ossos e, então, as cinzas são guardadas até serem enterradas, na despedida final.
“A afirmação de Bolsonaro é absurda. Após a morte, o defunto é colocado em uma espécie de cesta e pendurado em uma árvore em um local pouco frequentado da floresta. O corpo fica lá até a decomposição da carne, restando apenas o esqueleto.”
“Ao final desse processo, os ossos são recolhidos e levados para a aldeia do indígena morto, onde são queimados em uma grande fogueira com a presença de pessoas de aldeias aliadas, que vem participar do ritual funerário. Ao final da cremação, as cinzas são guardadas em cabaças e são distribuídas entre esses aliados, que as levam para suas aldeias. A partir daí, cada um faz uma festa para chorar o morto e enterrar as cinzas em um novo ritual”, explica o antropólogo, que durante um ano desenvolveu pesquisa de campo entre os Yanomami de Sucururu, região citada na entrevista.
O pesquisador lembrou ainda que em situações muito pontuais, especialmente na Venezuela – onde também vivem grupos e subgrupos do povo Yanomami, “uma pequena quantidade dessas cinzas é misturada a um mingau de banana que é consumido por pessoas específicas.”
“Não existe nada parecido com “cozinhar o morto para ser comido””, reforçou o pesquisador da UFMG.
Pesquisadora da cultura e do povo Yanomami desde 1968, a antropóloga e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) Alcida Rita Ramos, também refutou a declaração do presidente e deu explicação semelhante a de Pateo.
Alcida reforçou que há pequenas variações regionais dos rituais de luto dentro da Terra Indígena. Um desses, pode ser a “pulverização das cinzas dos mortos a mingau de banana que são ingeridos pelos parentes mais próximos.”
Além disso, para melhor entendimento, Alcida comparou o ritual de morte dos indígenas à cerimônia feita na igreja Católica.
“Assim como a hóstia cristã incorpora a memória do Cristo entre os vivos e os torna mais cristãos, também as cinzas do parente Yanomami transmitem a sua essência aos vivos e os tornam mais fortes. É a manifestação máxima de solidariedade humana, capaz de superar a própria morte quando une um morto aos seus parentes vivos. Ao mesmo tempo, a incorporação material do morto libera seus componentes imateriais para seguirem o seu próprio destino pós-morte, desprendendo-o definitivamente do mundo dos vivos”, cita a pesquisadora.
A antropóloga destaca que não existe prática de canibalismo no ritual de morte Yanomami, “tanto quanto engolir hóstia na comunhão católica pode ser chamado de canibalismo”.
O pesquisador lembrou ainda que em situações muito pontuais, especialmente na Venezuela – onde também vivem grupos e subgrupos do povo Yanomami, “uma pequena quantidade dessas cinzas é misturada a um mingau de banana que é consumido por pessoas específicas.”
“Não existe nada parecido com “cozinhar o morto para ser comido””, reforçou o pesquisador da UFMG.
Pesquisadora da cultura e do povo Yanomami desde 1968, a antropóloga e professora emérita da Universidade de Brasília (UnB) Alcida Rita Ramos, também refutou a declaração do presidente e deu explicação semelhante a de Pateo.
Alcida reforçou que há pequenas variações regionais dos rituais de luto dentro da Terra Indígena. Um desses, pode ser a “pulverização das cinzas dos mortos a mingau de banana que são ingeridos pelos parentes mais próximos.”
Além disso, para melhor entendimento, Alcida comparou o ritual de morte dos indígenas à cerimônia feita na igreja Católica.
“Assim como a hóstia cristã incorpora a memória do Cristo entre os vivos e os torna mais cristãos, também as cinzas do parente Yanomami transmitem a sua essência aos vivos e os tornam mais fortes. É a manifestação máxima de solidariedade humana, capaz de superar a própria morte quando une um morto aos seus parentes vivos. Ao mesmo tempo, a incorporação material do morto libera seus componentes imateriais para seguirem o seu próprio destino pós-morte, desprendendo-o definitivamente do mundo dos vivos”, cita a pesquisadora.
A antropóloga destaca que não existe prática de canibalismo no ritual de morte Yanomami, “tanto quanto engolir hóstia na comunhão católica pode ser chamado de canibalismo”.
Para Pateo, este pensamento, de sugerir que existe o canibalismo, “é um resquício de imagens preconceituosas que remontam à chegada dos europeus na América do Sul no século XVI.”
Fonte: Valéria Oliveira, g1 RR — Boa Vista