Os superneurônios dos superidosos
Como algumas pessoas com mais de 80 anos desafiam o envelhecimento cognitivo e mantêm memória privilegiada
Por Roberto Lent
25/11/2022 04h30 Atualizado há 2 horas
Ontem assisti a um depoimento espontâneo de Lima Duarte, com seus 92 anos de lucidez, manifestando o desejo de mudar o país nas eleições, e relembrando com a maior agilidade cognitiva os filmes em que atuou lá atrás no passado. E que dizer de Fernanda Montenegro, a quem vimos aos 93 anos em sua posse na Academia Brasileira de Letras e depois em diversos eventos públicos, falando de improviso com alta precisão e sentido. São os superidosos, indivíduos que intrigam os neurocientistas pela capacidade cognitiva superior à grande maioria das pessoas 80+.
“Superidosos” é o termo mais adequado mesmo, porque trata-se de uma minoria de pessoas que mantêm intacta a sua capacidade de memória episódica, aquela que nos permite reconstruir de imediato os fatos do passado, assim no vapt vupt de uma conversa improvisada. Em termos cerebrais, como se explica esse extraordinário desempenho dos superidosos?
Já existem alguns trabalhos que se beneficiam da doação de cérebros após a morte, com que as próprias pessoas ou seus familiares brindam a Ciência com admirável generosidade. Nos Estados Unidos há um programa de pesquisa específico para essa faixa etária, de onde se originaram trabalhos reveladores que comento aqui. Os autores analisaram cérebros de doadores cujas capacidades cognitivas haviam sido testadas antes de sua morte, divididos em 4 grupos: os superidosos, é claro, comparados a idosos típicos de mesma faixa etária (maiores de 80 anos, chamados aqui simplesmente de “idosos”), pessoas portadoras de comprometimento cognitivo leve, nos quais já se identificam pequenas falhas de memória, e finalmente um grupo de adultos na faixa dos 50-60 anos.
O alvo da análise foi o chamado córtex entorrinal, região do cérebro que intermedeia a transferência das memórias de onde são provisoriamente guardadas (o hipocampo), para o arquivo de longo prazo (todo o córtex cerebral). O entorrinal é uma região chave, porque faz o meio-de-campo entre as memórias que devem ser eliminadas ou podem ser enfraquecidas, e as que guardamos ao longo da vida por muito tempo. Mais ou menos assim: você assiste a um filme marcante, e ao final lembra de todos os detalhes, desde a roupa dos personagens até as cores do cenário. Passa um tempo, e você só lembra mesmo daquelas cenas com maior carga emocional ou maior relevância para o enredo. O córtex entorrinal é que faz o filtro entre o que fica e o que desaparece de suas lembranças.
Pois bem. Fatias finas do córtex entorrinal dos superidosos doadores foram analisadas ao microscópio e comparadas com os outros grupos. O que se encontrou foi uma população de superneurônios, maiores e mais numerosos em comparação com os idosos típicos, mais ainda em comparação com os portadores de um início de perda de memória. Outra surpresa é que esses superneurônios não eram nada super no cérebro dos adultos jovens usados como comparação. E olhem que o estudo era feito “cegamente”, isto é, os pesquisadores analisavam as imagens microscópicas de cada cérebro sem saber de qual grupo provinham.
A comparação foi adiante. Os sinais de desorganização e acúmulo de proteínas cerebrais característicos da doença de Alzheimer, que se anunciam após os 70 anos em quase todos nós e podem se agravar ou não, encontravam-se ausentes nos superidosos. Na interpretação dos autores, acompanhando a redução do cérebro como um todo, os neurônios tendem a murchar, e alguns vão se deteriorando até morrer. Os superneurônios dos superidosos, no entanto, permanecem funcionais até bem mais tarde do que na maioria das pessoas. Com neurônios mais robustos, os circuitos do cérebro conseguem se manter vivos e funcionantes. Infelizmente, até o momento só conseguimos saber se temos ou não superneurônios se doarmos nossos cérebros aos biobancos que realizam pesquisas sobre envelhecimento. A decisão é no final, mas já é um bom começo para a neurociência do envelhecimento…
Fonte: Roberto Lent